Lamento ter de assumir que estamos vivenciando uma nova guerra, sem data para acabar: os humanos “normais” contra os obesos. Neste novo cenário mundial, pessoas que se consideram “normais“ ofendem, execram, debocham e negam ajuda a seres supostamente diferentes, ou seja, os obesos.
A obesidade não escolhe idade, sexo, categoria profissional ou raça . Todos nós, em alguma fase de nossas vidas, podemos desenvolver obesidade. Existem fatores genéticos, hormonais, comportamentais, sociais e ambientais que podem influenciar o ganho de peso e transformar esta pessoa, anteriormente “normal”, numa pessoa considerada diferente dos padrões definidos por esta guerra atual.
Estamos assistindo a verdadeiras cenas de terror, nas quais os humanos estão lutando contra outros humanos, ou seja, pessoas que estão se desumanizando ao ofender e execrar aqueles que necessitam prioritariamente de humanização.
Onde tudo isto vai acabar? Estamos cada vez mais sendo julgados por nós mesmos, exclusivamente segundo critérios de aparência física. A bela humanização dos atos humanos está se fragmentando em fatos tristes, como uma pessoa obesa proibida de assumir vaga em concurso, falta de estrutura hospitalar para atendimento de uma pessoa obesa ou conversas preconceituosas num reality show.
Enquanto muitos cientistas previam obter o controle da obesidade até 2025, dados recentes da UNICEF revelam que a possibilidade de estancar as altas taxas de obesidade infantil está muito remota. A obesidade infantil consiste num importante parâmetro, pois reflete a precoce desestruturação de hábitos alimentares, estilo de vida e fatores ambientais.
Talvez o tempo tenha passado muito rápido e as diferentes gerações acabaram se perdendo, ficando confusas, carentes de amparo e orientação sobre como agir diante da obesidade. Teria ficado mais cômodo separar os “normais“ dos obesos e, desta forma, deflagrar esta guerra sem princípios? Embora a obesidade tenha sido verdadeiramente classificada como um problema de saúde pública e um problema epidêmico na década de 90, muitos registros históricos mostram que estamos engordando há cerca de 300 anos. Desde os anos 1700, vem ocorrendo uma profunda desproporção entre ganho de peso e produtividade. Em outras palavras, a medida que o peso corpóreo aumenta, cai a produtividade.
Ao longo destes últimos 300 anos, muitas coisas estranhas e interessantes aconteceram. Houve a fase de superutilização do corpo humano para o trabalho; depois tivemos a fase da mecanização e da revolução industrial, na qual o corpo humano pode enfim se poupar um pouco, ainda que o ganho de peso permanecesse crescendo de forma exponencial.
Na verdade, somos vítimas de um passado que foi definindo gradativamente as medidas do nosso físico. Até que, num certo momento de muita luz, começamos a correlacionar as doenças com a obesidade e começamos a buscar alternativas mais saudáveis, como atividade física e mudanças dos padrões alimentares.
Só que, agora, nos dias atuais, quando estamos com maior controle de todos os fatores relativos a obesidade, resolvemos inovar, criando uma divisão entre pessoas “normais“ e os obesos. Humanos “normais“ contra os pessoas obesas.
A obesidade está entre nós há tanto tempo e, nos dias atuais, resolvemos segregar os obesos. Estamos criando a casta dos obesos? Estamos tendo medo dos obesos? Criamos inclusive um nome para isto - gordofobia. O mais interessante em tudo isso é que muitos membros das castas superiores, ou seja, os humanos “normais”, um dia podem ter sido obesos. Quem não conhece a história de um parente ou amigo ou mesmo sua própria história de vida, retratando uma fase com sobrepeso que foi superada por meio de medidas diversas como mudanças nos hábitos, medicamentos, terapias, cirurgias?
A situação socioeconômica de muitos países, como o Brasil, retrata uma divergência sem solução: temos pessoas que passam fome e temos pessoas obesas. Quais destas pessoas precisam de amparo? Quais destas pessoas precisam de humanização e de reconhecimento por parte de todas as pessoas, especialmente aquelas que ocupam cargos de gestão? Como a resposta parece extremamente óbvia, pergunto: qual o fundamento de uma guerra entre humanos “normais“ contra pessoas obesas?
Do ponto de vista médico, temos de exaustivamente estimular medidas como a prática de atividade física, alimentação balanceada e eliminação de hábitos de vida maléficos. Tudo isto já está bem estabelecido. A questão é que quando a obesidade já está avançada, estamos recuando, negando, debochando e tendo medo. Quando a obesidade é ostensiva e um protocolo de cuidados multidisciplinares se torna uma emergência de saúde pública, aí nos deparamos com coisas grotescas como impedir a pessoa obesa de assumir um cargo ou mesmo retardar um atendimento médico por não termos uma maca para acomodar aquela pessoa.
Quero insistir na tese de que estamos engordando há 300 anos, estamos convivendo com a obesidade em caráter epidêmico há pelo menos meio século, estamos vendo um número crescente de crianças obesas e nossas ações, como seres humanos, parecem verdadeiramente involuir, a ponto de fragmentarmos nossa sociedade em humanos “normais“ e os obesos. Como muitos cientistas já definiram: os humanos “normais“ contra os obesos. Quem sabe 2025 possa ser um ano de reflexão sobre isto.
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